O Ponto de Partida
Coleccionador Piero Reis na entrada da Galeria do Núcleo de Arte (2010).
Fui a Moçambique, pela primeira vez, em 2005, de férias nas Quirimbas, e apreciei o mar, as cores, as paisagens e a simpatia do povo. Depois, voltei àquele país, no início de 2006, em missão de trabalho. Comecei a apreciar os objectos antigos e tribais, especialmente as máscaras de Mapiko e as telas artesanais dos pintores de rua. Em Junho de 2007, passei, acidentalmente, diante do Núcleo de Arte. Na galeria, havia uma exposição colectiva, muitas obras me impressionaram de imediato pela sua força e expressividade. A expressividade da arte tribal revisitada com olhos modernos e o resultado de uma cultura antiga, trazida ao mundo de hoje, isto é, a sensação que muitas obras me transmitiam. As telas do artista Neto, cheias de cores e movimentos; a “União da família” de Cossa; os traços de Falcão aparentemente infantis, mas muito complexos; os traços simples, mas intensos de Mucavele; as paisagens de Tiger Matimele, para citar somente os primeiros artistas que conheci, são diferentes expressões pictóricas, porém todas cheias da alma de Moçambique. Quadros intensos que trazem à mente a intensidade das cenas vistas nas ruas e aldeias, as expressões das pessoas e a força da natureza. De igual modo, nesse dia, conheci o Falcão, que me mostrou as suas pinturas. Comprei duas telas, e assim começou a minha aventura pelo mundo da arte plástica moçambicana. Costumava ir a Maputo três ou quatro vezes por ano, e, quando estava na cidade, os meus dias acabavam sempre no Núcleo. Os meus amigos diziam que era o meu segundo escritório, pois, muitas vezes, lá organizava também reuniões de negócios. O Núcleo de Arte é um lugar mágico, cheio de vida, sons, cores e alma moçambicana. Uma casa colonial que se tornou numa galeria de arte sempre activa, o atelier onde os artistas trabalham, cheio de suas ferramentas e obras, e, no meio, o Café Camissa, a data dos factos, bar agradável, que é um ponto de encontro encantador, onde ia conversar com artistas e, geralmente, ouvir boa música ao vivo. Foi aí que descobri o Afro-jazz e a Marrabenta, bela música folclórica moçambicana. Portanto, o Núcleo é um lugar fascinante, em que me sinto em casa, tanto que me tornei membro não-artista e simpatizante da Associação. Depois de Falcão, conheci os artistas Jamal, Bono Mandlate e Tiger Matimele, cujas obras, a partir de então, começaram a enriquecer as paredes da minha casa, em Veneza. Sempre que fosse ao Núcleo, fazia novas descobertas, novos conhecidos e novas amizades: Nhongwene, Kass Kass, Butcheca, Bento Mulungo, Makolwa, Nhakotou e Cláudia, simpática secretária que, na ocasião, me ajudou, junto com Nhakotou, a negociar com os artistas que eu desconhecia.
E eles apresentaram-me a vários. Trata-se de amigos com os quais passei boas horas a conversar sobre Moçambique e arte. Na nossa interacção, às vezes, bebendo um gin tónico ou uma cerveja, aprendi sobre a essência de suas obras e sua cultura. Por exemplo, Nhongwene fez-me descobrir a Casa-Museu Chissano, localizada na cidade da Matola, onde encontrei uma bela obra de Jacob Estevão, dos finais dos anos 50, que me parecia inovadora para aquela época. Ora, algumas noites começaram com uma volta na galeria, continuaram no atelier e acabaram no Café Camissa, que nos primeiros anos, era gerido pela Tina, na companhia do simpático Pequenino, que servia as bebidas. Boas noites, de conversa com amigos, boa música ao vivo e boas conversas com os artistas, que me fizeram entender muito da arte e do seu espírito. No começo, estava com os meus colegas de trabalho, Roberto, Jorge, Amaro e, depois, Moreno e Giovanni, a quem forcei a acompanhar-me, tendo-se apaixonado pelo Núcleo e pela arte plástica moçambicana. No atelier, era interessante ver o maestro Mucavele a trabalhar, com o seu charuto inevitável, um pouco lacónico, mas feliz em mostrar o seu trabalho. Ou Kass Kass, sempre a pintar, no seu canto, rodeado das suas belas pinturas. Num belo dia, em 2012, vi uma das pinturas de Kass Kass, que reproduzia o atelier, com muitas telas brancas (fig. 4, abaixo). Tive a ideia de perguntar aos amigos artistas (supracitados) se estariam interessados em contribuir na pintura iniciada por Kass Kass, preenchendo-a com pequenas intervenções de cada um deles. Aquela obra, que reproduzia o ambiente do atelier, dispunha da representação do espaço de trabalho de alguns artistas, daí que pensei em convidar cada um a intervir, como se estivesse a reproduzir ou criar o seu trabalho. A colaboração resultou numa obra colectiva de 17 artistas (fig. 5, página 40 e 41). Trata-se de uma pintura que me é muito cara, porque simboliza o espírito do Núcleo: arte, amizade e estar juntos.
Portanto, foi agradável conversar com Victor Sousa (1952 – 2017), alma gentil, poeta. Ou com Neto, outro grande artista. Também foi agradável negociar com os artistas, tentando deixar claro que eles eram todos iguais para mim, que eu não queria pagar pelas obras de alguns mais do que de outros, porque, para mim, eles eram e continuam a ser todos amigos e todos bons, pelo que não queria fazer qualquer diferença. No entanto, alguns desses amigos desapareceram. Penso no Bono (1977 – 2015), no Itélio (1981 – 2011), no Nhakotou (1978 – 2017). Além disso, mais tarde, encontrei-me com outros, e todos me ajudaram a amar a arte moçambicana. Nhongwene deu-me uma grande ajuda; apresentou-me a muitos colegas e indicou-me muitas obras. É também graças a ele que adquiri um bom número de obras. Posso dizer que montei uma boa Colecção ou, pelo menos, uma Colecção de que tanto gosto, constituída por artistas e obras heterogéneas, mas elas têm em comum o facto de me impressionarem logo à primeira vista. Por exemplo, “Muthiana Orera” de Neto ou “Máscaras Rituais” de Lívio de Morais, ou “Coisas da Terra” de Norberto (ver apresentação das obras da Colecção. E, ainda, confesso: foi complicado adquiri-las, mas por todas me apaixonei logo que as vi. Em seguida, tive a sorte de encontrar, no meu caminho, Titos Pelembe2, bom artista, conhecedor e estudioso da arte moçambicana. Aliás, ele ajudou-me a dar à minha paixão e à minha Colecção um fio condutor mais orgânico, com este livro, que espero que seja apenas um começo. Quando comecei a frequentar o Núcleo, havia poucos moçambicanos a apreciarem a arte do seu país. Muitas pessoas que conhecia, embora cultas, não entendiam o que achava belo nas obras que comprava, pois havia pouca atenção para a arte plástica. Além do Núcleo, não havia galerias. A Kulungwana, por exemplo, abriu em 2008; a Tilândia, em 2011; e o Museu de Arte Moderna era pouco frequentado e infelizmente a situação persiste. Actualmente, porém, as coisas mudaram. Há cada vez mais moçambicanos a se aproximarem para apreciar a sua arte. Há muito mais interesse nas pessoas em visitar novas galerias. Por isso, apela-se maior engajamento e contribuição do Ministério da Cultura e Turismo no processo de desenvolvimento das artes plásticas e promoção dos artistas moçambicanos.